6.30.2008

* Pedra Branca, sonorização do inapreensível


O grupo paulista Pedra Branca, que se apresentou no teatro do Sesc Prainha na sexta-feira, 20 de junho, toca o que muitos chamariam de world music, e o que outros chamariam também de música étnico-eletrônica. A inadequação dos termos não parece óbvia à primeira vista, à medida que o próprio figurino dos músicos e a disposição dos elementos cênicos no palco nos remetem a “outros lugares”, a uma iconografia hindu-oriental. Mas qualquer tentativa de vislumbrar verossimilhanças entre conceitos geográficos – ou mesmo entre culturas, identificações, etnias – e musicais esbarra na atmosfera cíclica e instransponível da experiência sonora que se vivenciou.

Porque para além dos discursos de identidade cultural e dos rótulos reside a força transformadora dos sons que escapam à percepção – e o Pedra Branca parece buscar em cada fragmento rítmico e melódico o deslocamento, as estranhezas sensíveis. Não a afirmação de identidades étnicas, mas os desencontros das identificações, a descontinuidade, a independência de matizes formais. Na comparação de Deleuze e Guattari, não a raiz, mas o rizoma – Diferentemente das árvores ou de suas raízes, o rizoma conecta um ponto qualquer com outro ponto qualquer e cada um de seus traços não remete necessariamente a traços de uma mesma natureza; ele põe em jogo regimes de signos muito diferentes, inclusive estados de não-signos (DELEUZE; GUATTARI. Mil Platôs. p.32).

Havia no palco uma cítara, que fazia as linhas melódicas. Não existiam instrumentos harmônicos, de modo que a harmonia ficasse suspensa ou sujeita às programações pré-gravadas, as quais incluíam desde bases de acordes (quase sempre um único por vez – o set não foi dividido em canções, mas em climas, em movimentos) até depoimentos de personagens históricos – num deles identificava-se um Glauber Rocha incandescente e ensandecido falando da morte das utopias formais e do nascimento de uma antiutopia que viria das manifestações espontâneas do povo. E essa camada espessa de manifestações era a própria espontaneidade da música que o Pedra Branca fazia, em sua inspiração silenciosa. Para o grupo que se apresentava no Sesc, a música é mais simples que escalas e modos. É a experiência lúdica de manipular intervalos e freqüências de modo a criar atmosferas irrepresentáveis e irreproduzíveis um minuto além do próprio instante em que elas se formam.

Fui perguntado, ao final do show, se havia gostado. A resposta não é assim fácil porque, sempre que participamos de uma experiência nova, os sinais perceptivos que recebemos povoam uma região ainda inabitada do cérebro. Não ocupam as regiões das percepções seguras – as zonas cerebrais do prazer, do conforto ou da rejeição –, mas passeiam entre locais inexplorados, vazios, reentrâncias. E este é o grande mérito do trabalho de grupos como o Pedra Branca: reativar regiões inexploradas do universo sensível; tirar as pessoas do estado de anestesia; sugerir um contraponto para a selvageria estética do lugar-comum; desalienar o espírito da mesmice da música pop. Pedra Branca coloca todos seus esforços para criar uma antimatéria do som, e para que o público também vagueie por essas dimensões propostas. A certa altura os músicos pareciam querer emprestar seus ouvidos à platéia para que nenhum som fosse desperdiçado no vazio, para que cada micropartícula sonora causasse nos outros os mesmos impulsos vitais que permitiam a eles exasperarem tamanha inspiração, tamanha criatividade. E esta é a relação possível entre a música do grupo e a cultura hindu de que falávamos no início desse texto: fazer música é acreditar que o plano físico seja uma ilusão, é explorar as possibilidades do som para além das grandezas físicas. Ou, como fez o Pedra Branca com a leveza dos grandes artistas, transformar cada instante sonoro numa escritura sagrada.

Daniel Mendonça - jornalista

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(mais um belo texto do nosso amigo Daniel Mendonça, jornalista dos bons e amigo da polifönica)

1 comment:

André Ramiro said...

vou procurar...parece muito bom!
bjos de curitiba. e ruidosos. ;)