11.13.2006

arquitetura fuzz



O que lhe vem à cabeça se eu lhe perguntar o que é Arquitetura Bossa-Nova? Aposto que, mesmo sem saber coisa alguma sobre os períodos e estilos arquitetônicos, na sua mente surgirá a imagem de uma Copacabana de prédios luxuosos, calçadas desenhadas sugerindo a sinuosidade das ondas e do corpo das musas, além de cores suaves refletindo a luz do sol. Adivinhei? Se ao menos cheguei perto, então fará sentido o que direi nos parágrafos seguintes, pois a nossa conexão semiótica está plenamente estabelecida. Em todos os casos, pra sua informação, arquitetura bossa-nova é como ficou conhecido o estilo arquitetônico modernista no Rio de Janeiro dos anos 50, caracterizado pela obra de um velho conhecido nosso, Oscar Niemeyer. Oscarito tem declarações dignas de bossa-novistas malandrões como Vinicius de Moraes – ‘o que me atrai é a curva livre e sensual; a curva que encontro nas montanhas do meu país (...) e no corpo da mulher preferida’. Uh-lalá.

Mas nem toda arquitetura no Brasil é glamourosa como a de Niemeyer, assim como nem toda música brasileira é bossa-nova. A alguns quilômetros da voz ‘desafinada’ de João Gilberto, estava também a voz gritada de Gal, a psicodelia dos Mutantes e todo aquele tal de rock’n’roll. Como habitat de toda essa horda de jovens empunhando guitarras e desferindo berros ao microfone, só restava a garagem e os clubes – popularmente conhecidos como ‘inferninhos’ – onde podiam soltar o verbo à vontade sem serem repreendidos (a não ser pelos vizinhos!). O fato é que, ao contrário dos charmosos apartamentos onde o violão era rei, a arquitetura dos espaços onde imperava a guitarra não tinha nada de bossa, nem luxo, nem curva, nem nada. Muito pelo contrário...

...Liverpool, anos 60. Num ex-depósito de frutas e vegetais, 17 degraus abaixo do nível da rua, três salas com tetos abobadados e serragem no chão, umidade condensada chovia do teto enquanto pessoas dançavam ao som de mais uma apresentação dos... Beatles. Sim, esse era o Cavern Club, um clássico. Outros clubes como o The Flamingo e o Marquee Club ( berço dos Rolling Stones, The Who e outras milhares de bandas mods britânicas) não fugiam do padrão ‘precariedade’. E acredite, eram um su-ces-so.

No Brasil, especialmente no sul, alguns desses ‘inferninhos’ tornaram-se notáveis durante as décadas de 80 e 90. Em Porto Alegre, havia o Bar Ocidente, situado num edifício de 120 anos, cujas paredes e reboco eram de barro e dissolviam-se com a chuva. Tratava-se de um verdadeiro espaço lastimável, e que no entanto, presenciou apresentações antológicas das bandas clássicas do rock gaúcho e do rock independente do Brasil inteiro. Ainda em PoA, existia o Garagem Hermética, localizado na boêmia rua Oswaldo Aranha. A reação das pessoas ao chegarem ao lugar era de ‘argh, que coisa horrorosa! Mas, epa, eu posso tocar nessa merda também!’, e assim se formava mais um auê rock’n’roll na cidade.

Aqui em Florianópolis, a história dos inferninhos confude-se com a figura de Franck Schnonemberger, proprietário do primeiro (e curioso!) refúgio roqueiro da ilha – o Trópico’s. O lugar era um ‘barraco’ de madeira com cocos pendurados na entrada e umas cestas de frutas no balcão. De dia, casa de sucos, de noite, casa de álcool. O palco era num ‘puxadinho’, e foi lá mesmo que as bandas da cidade começaram a se reunir pra tocar. Depois o Franck mudou seu negócio pra Av. das Rendeiras, onde nasceu o Underground Rock Bar, o mais saudoso abrigo roqueiro da cidade. O Underground também tinha estrutura de madeira, e parecia um barracão, mas ao menos tinha um logo mais coerente com o contexto (os cocos foram substituídos pelo símbolo do metrô de Londres). Bons tempos aqueles...

Pois bem, amigo. Depois desse discurso todo, a questão que fica é: como pode espaços tão horrorosos e mal resolvidos arquitetonicamente construírem tantas histórias e serem tão freqüentados, a despeito de todo o desconforto térmico, péssima acústica e estética precária? O Júpiter Maçã não é arquiteto, mas sabe responder bem à questão – lugar legal ‘tem que ter um som legal, tem que ter gente legal e cerveja barata’, ponto. E digo mais – lugar legal tem que ter porta de banheiro riscada com recadinhos obscenos, paredes repletas de pôsteres de shows e muros pichados com nomes de bandas. Lugares legais têm que ser Mutantes. E ter muito fuzz pra incomodar os ouvidos dos bossas que dizem o contrário.


* Juliana Barbi é estudante de Arquitetura, e espera não seguir o exemplo de Herbert Vianna, Humberto Gessinger, Roger do Ultraje e Fernanda Abreu. Por que diabos existe tanto ex-estudante de Arquitetura no rock nacional?!

*
[Juju em sua coluna no projeto da revista polifönica. coluna 'abrigos', fevereiro 2005]
ps.: passou o tempo e Juju não conseguiu vencer o destino: hoje ela
toca violão, teclado e canta na banda Verano

5 comments:

Anonymous said...

Juliana, parabéns pelo ótimo texto.
Não tinha idéia de que escrevias com tanta propriedade! Tenho orgulho de você!

Anonymous said...

Juju Barbi, da hereditariedade. Quando presentes, os genes dominantes não deixam que o gene recessivo se desenvolva. Somos primos, primários, primatas, caveiras e crânios (meus 32 dentes, tenho todos) - Nouvelle Vague Rio de Janeiro bossa nova 3000 - danuza leão & bungalows onde tomo água de coco em copacabana olhando para as curvas, hoje do mar turvo, antes da mulher preferida de Niemeyer. Desisti da arquitetura e o rock só para o pai e irmãos (plus os primos, todos aliás); Tudo tão mudado e já não lembro das coisas quê.

* polifönica * said...

também já não me lembro, querido gabus.
me consola saber que continuarei não me lembrando, nunca e nunca, caminhando sempre no eterno efêmero, 'onde tudo é começo e recomeça', como diria um poeta de minha terra natal.

2 anos e troquei o fuzz pelo violão de aço. ié!

[juju]

Ficas said...

parabéns juju. acho muito bom essas novas opções de leituras que me aparecem! beijos

Anonymous said...

Juju,
Olha só, cheguei aqui pelo site da unaberta... que coisa! Parabéns, ótimo tema, muito bonito!